O amigo da onça
Havia uma mata no meio da cidade. O que separava a avenida cheia de carros e os troncos cheios de vida era aquele velho rio.
A mata urbana ficava do outro lado da rodoviária, servindo de boas vindas para os recém chegados na Princesinha de Minas.
A vasta fauna que habitava aquelas bandas vivia em absoluta harmonia, tudo funcionava incrivelmente bem. Cada macaco no seu galho, pássaros voavam durante o dia e morcegos exploravam a noite, capivaras posavam às margens do rio e viravam sempre um novo cartão postal.
E no meio disso tudo vivia uma Onça.
Era ela, o maior felino das Américas, quem reinava naquela mata.
Diariamente a Onça esperava até que o sol se despedisse das árvores para rondar por seu reino impondo todo o poder que a natureza havia lhe dado. O barulho de suas garras espalhando as folhas caídas no chão era tudo que se ouvia quando ela passava e, até então, só quem vivia naquela floresta conhecia a potência de seu rugido.
E por falar na floresta, vivia por lá, também, um trapaceiro Timboo.
Com seu pequeno porte e poucos quilos, o gambazinho adorava criar uma confusão.
A cadeia alimentar para ele era só uma história pra boi dormir, detestava esse lance de autoridade e poder. Talvez por isso, de todos os animais daquela mata, ele era o único que não temia a majestosa dona Onça.
Cansado do temor que a rainha da mata causava toda vez que resolvia dar seu passeio noturno, o Timboo então resolveu que havia chegado a vez da Onça cair em uma de suas traquinagens.
O gambá reuniu alguns insumos: um pouco disso, um pouco daquilo, uma frutinha verde e amarga que achou bonitinha, uns cereais e cozinhou tudo em sua fogueira.
Para dar o toque final, ele jogou um pouquinho de fungo ali dentro, tampou e deixou por lá até que a mágica acontecesse .
Quase um mês depois, o Timboo, destemidamente, vai até o altar da temida Onça.
Com passos curtos e uma falsa devoção, o gambá carregava com ele uma linda garrafa. Seu líquido brilhava feito ouro, era quase inimaginável que aquilo pudesse ser bebido.
Ele se aproximou com cautela e disse:
“Oh, vossa alteza Onça. Eis aqui a minha nobre oferta. Aceite como um gesto de devoção e respeito por tudo que você representa para nós”
A Onça se levantou e caminhou lentamente em direção àquele pequeno animalzinho. Tomou a garrafa de sua mão e, sem mostrar muita gratidão, retornou ao seu trono. Lá ficou até o Timboo partir.
Antes de sua tradicional ronda noturna pelo seu reino natural/urbano, a rainha, num passe de mágica, decidiu beber aquele curioso líquido dourado. Surpreendida pelo sabor jamais imaginado, a Onça bebeu tudo de uma só vez.
Em meio ao seu intimidador passeio pela mata, a majestade começa a ver as árvores balançarem de uma forma que ela nunca viu. O chão se move, as estrelas giram, mas a Onça segue em seu caminho e, quando o sol ameaça nascer, ela volta ao seu trono e se coloca ao seu merecido descanso.
Ao acordar no meio da tarde, meio desorientada e com aquele bafo de Onça, o felino se vê cercado de toda a fauna daquela mata urbana. Enquanto ela se questionava o porquê da presença de todos ali, alguns flashes da sua caminhada noturno se revelavam em sua mente:
Enquanto andava à noite, sob efeito do presente do Timboo, a Onça perdeu seu rumo. E tudo começou quando, no girar das árvores, ela virou para o lado errado da trilha e acabou cruzando a fronteira da mata e caiu no estacionamento do Jardim Botânico que havia nas redondezas.
Logo depois veio outro flash, num momento de desespero sem saber como voltar para sua casa, ela se vê na porta de um hotel desesperada para pegar um quarto, mas ninguém atendeu à sua súplica.
Os flashes em sua mente denunciavam a esbornia. Ora se lembrava de aparecer em um bairro da região, ora vinha a mente uma passada numa ciclovia e até mesmo uma pausa numa ponte para questionar o que estava fazendo com a própria vida, mas nada daquilo fazia sentido para a Onça.
Então o Timboo se destacou na multidão de bichos e disse:
“Hm hm. Com licença, Dona Onça! O que eu te ofertei ontem é uma receita que minha família carrega há gerações. Os humanos a chamam de cerveja, mas aqui, na mata, a chamamos de Jufas IPA. É tão boa que a gente nem vê quando o efeito vem. O que você viveu ontem chama-se porre! Bem-vinda à comunidade da Mata do Krambeck”.
A bicharada foi a loucura! Afinal de contas, esse foi um boêmio rito de passagem com tudo que tem direito: flashes, histórias e bons rugidos.
Desde esse lendário dia, a Onça já não era mais temida, os bichos não se escondiam mais e aquela comunidade ganhava mais um membro ativo e, dessa vez, amigável.
Reza a lenda que, desde então, os bichos se reúnem vez ou outra para tomar o famoso porre. Sempre de olho na Onça, porque da última vez que ela saiu andando por aí, virou até uma matéria do Fantástico..