Isso é ouro
Em meio às ondas e tempestades, um grupo de corsários encara a face da morte em busca de mais uma pilha de tesouros esquecida no fundo do mar. Não era a primeira vez que aquela embarcação via o fio da vida correr pelos olhos. Sua tripulação, composta por estivadores e ébrios, já havia flertado mais vezes com a eternidade do que com damas em bares das docas.
Tempestade adentro, eles seguem munidos de uma confiança inabalável e um estoque inesgotável de cerveja, a caminho da maior pilhagem que aquele navio já havia visto.
Os corsários eram liderados por um Capitão misterioso. Ninguém sabia de onde ele vinha, mas rezam as lendas que ele já nasceu nas docas. Alguns dizem que ele é filho de um Boto de água salgada e que, ao nascer, sua mãe incumbiu a responsabilidade de sua criação ao Mar e desapareceu.
Crescer nos portos fez com que a vida fosse a grande tutora daquele jovem órfão. Sorrateiro, ele se infiltrava entre tripulações, embarcava em navios e estava sempre em alto mar.
O dom daquele garoto era a invisibilidade. Imperceptível nas campanhas em alto mar, ele absorvia todas as histórias que os velhos corsários contavam. E foi juntando pedaços desses relatos que ele descobriu a pilha de ouro que os trouxe até essa história.
A lenda dizia que em uma ilha perdida no Atlântico havia um oásis dourado em meio ao verde da vegetação local. Era ouro suficiente para revestir todo o seu navio e também sua tripulação.
De volta ao navio, eles atravessam a tempestade feito um murro bem dado. O marujo bêbado no topo da vela finalmente avistou onde atracar e berrou em alto e não tão bom som “Terra, hic, à vista!”. A lenda era real. A Ilha Dourada de Saruê estava bem diante dos já cansados olhos daquele velho filho do Boto, que interrompeu um sorriso — que ele nunca dera — levando seu inseparável cantil até a boca.
Em terra firme, eles desbravaram a ilhas por dois dias inteiros em busca do oásis dourado. Quando o que antes parecia um plano começou a parecer um delírio, o capitão avistou uma entrada reluzente por entre as rochas de uma montanha.
Deixando todos seus protocolos arquetípicos para trás, ele voltou a ser aquele jovem do porto e correu em disparada na direção da caverna.
Adentrando pelo iluminado túnel, os lábios do capitão, já ressecados pelo sol, se esticaram tentando uma posição nunca tentada antes: a de um sorriso.
A lenda era real!
Seguido com atraso pela tripulação, ele avistou no fim daquela caverna a origem do reluzente sinal dourado, um barril dourado em cima de um velho altar nativo.
“Onde está o ouro que supostamente vestiria nosso navio?” a tripulação e indagava.
“Esse barril não paga nem a minha pendura no bar do porto” disse o velho ébrio
O capitão se aproximou do altar e encontrou uma inscrição talhada nas pedras que dizia:
“Nem todo ouro do mundo poderia conceder aos humanos o prazer dos sabores e aromas que guardam a entidade deste barril. Liberte o Saruê aqui confinado e vislumbre uma nova era de sabores pelos quatro cantos do mundo.”
A última fagulha de fé que havia naquele cansado homem o instigou a levar o barril até seu navio.
Diante de uma tripulação que se dividia entre o medo de uma maldição e a frustração de uma pilhagem mal sucedida, o Capitão finalmente abriu o barril.
Seguido do estardalhaço de sua tampa dourada caindo na madeira velha do navio, uma espécie de entidade passeou pelo ar e se espalhou feito neblina na proa da embarcação. Uma neblina viva que seguiu em direção ao porão, onde finalmente repousou nos tonéis de cerveja ali guardados.
O velho ébrio sugeriu que a entidade do Saruê havia enfeitiçado a cerveja e se dispôs a bebê-la.
Ao encher sua caneca, o bêbado percebe aroma e cores diferentes do que ele havia bebido por anos. Desconfiado, mas com sede, ele se põe a beber e não para até sua caneca estar totalmente vazia.
O Capitão e a tripulação olham cada gole apreensivos até ouvirem o veredito:
“Isso, hic, isso é OURO!”